A transgressão de Deus.

Diante da tarefa de falar a vocês hoje, pus-me a pensar sobre algumas “imagens” de Deus (Pai, Filho, Espírito) de que mais se tem falado.
Um Deus: milagroso, poderoso, “dos impossíveis”, “de promessas”, “de cura”, “libertação”, o Guru, o Psicólogo, e tantos outros… Os crentes edificam/adoram a imagem de Deus que mais lhe agrada.
Ao mesmo tempo, isso me faz pensar em como se formam os “escolhidos” para caminhar com Deus e as expectativas sobre eles projetadas.
O crente se molda ou é formado à imagem e semelhança do seu “Deus”.
E pergunto: o quanto essas expectativas construídas hoje em torno de Deus são compatíveis com o dialeto/linguagem do Evangelho?
Paulo nos conduz à imagem de um Deus que não pode estar comprimido em imagem alguma: um Deus transgressor.
Transgressor = aquele que atravessa, viola (as leis), desobedece, infringe, e deixa de cumprir certas “normas”. Não se contenta com o “status quo”.

Transição: A argumentação de Paulo aos Coríntios nos remete a uma transgressão de Deus em pelo menos dois níveis.

1º No nível da mensagem: a palavra da Cruz (v. 18-25).

Começa fazendo uma afirmação forte: a palavra da cruz é loucura! (v. 18)
Loucura = alienação mental; insensatez; doidice; grande extravagância.
A mensagem da cruz é uma “grande extravagância”, porque a cruz era sinal de morte, vergonha e maldição.
Choque da mensagem cristã com a cultura ambiente: como ser relevante sem negociar princípios?
Corinto = “cidade cosmopolita” – gente de todas as partes do mundo (heterogênea, várias raças, culturas, religiões e classes sociais).
Era um centro intelectual (filosofia/ correntes de idéias) e um centro religioso (muitas religiões convivendo juntas).
Duas culturas matrizes: a judaica e a grega (gentílica).
Tinha uma comunidade fervorosa, talentosa e cheia de dons – ao mesmo tempo em que muito exposta à corrupção da vida ambiente.
A solução de Paulo frente a esse quadro é apresentar um Deus transgressor – que não se encaixa em nenhum padrão de expectativa.
Ele faz isso:
Opondo: sabedoria de Deus X sabedoria dos homens (v. 21).
Apresenta uma pregação que vai de encontro às expectativas humanas (judeus=sinais / gregos=sabedoria). Procuravam nada mais que seguranças – pelo milagre ou pela doutrina satisfatória.
Essa pregação é Cristo crucificado – para os que foram chamados é sabedoria, para os demais é loucura, escândalo, vergonha.
Em que, nós, Igreja do Caminho, somos desafiados? A reorientar sempre a maneira como discernimos o ser de Deus e nos relacionamos com Ele.
Deus não é dono de uma loja de conveniências – 24 horas aberta p/ atender os clientes em suas múltiplas necessidades.
Ele transgride todas as normas – a maior delas foi amar incondicionalmente a mim e a você (Jo 3.16).
Chama-nos a uma identificação impopular: a cruz de Cristo (v. 25).

2º No nível do chamado: fracos, loucos e desprezados (v. 26-29).

Paulo aqui chama os membros da comunidade a uma auto-avaliação. Em outra tradução: “Considerai, irmãos, quem sois, vós que recebestes o chamado de Deus” (v. 26).
Lugar propício: Corinto tinha em torno de 4 milhões de habitantes, dos quais 2/3 era de escravos. Ou seja, a maioria era de gente simples, pobre e desprezada.
Oposição: os que existem aos olhos do mundo (nobres de nascimento, poderosos) X os que só existem aos olhos de Deus (as “coisas” loucas e fracas).
A Bíblia está recheada de exemplos dessa “predileção” de Deus:
Moisés = não tinha eloqüência. Deus diz: vá, eu serei com a tua boca e te ensinarei o que falar (Ex 4.10-12).
Jeremias = mal sabia falar e dizia não passar de uma criança. Deus diz: “eu ponho na tua boca as minhas palavras” (Jr 1.5-9).
Povo de Deus = antes não eram nem povo. E pela sua situação de não-povo, são chamados a ser povo de Deus (1Pe 2.10).
Jesus = pobre de nascimento, nazareno, filho de carpinteiro.
Os pequeninos = “Graças te dou, ó Pai… porque ocultaste estas coisas aos sábios e instruídos e as revelaste aos pequeninos” (Lc 10.21).
E a pergunta é: por que essa escolha? Resposta: para que ninguém se orgulhe de si mesmo, mas se orgulhe no Senhor (v. 29).
A transgressão de Deus não se resume na palavra da cruz, mas se revela também em quem Ele escolheu pra fazer parte do seu caminho.
Isso nos desafia, como comunidade, a repensar a maneira como discernimos nosso lugar no Reino de Deus e aceitamos nosso chamado.
O que implica considerar algumas coisas, para finalizar:
Nosso chamado não se baseia em alguma virtude que possuamos.
Não se paralise por achar que é pequeno ou incapaz. Ninguém é pequeno demais que não seja útil ao Reino de Deus. Ser pequeno ou fraco não é demérito, mas qualidade aos olhos de Deus.
“Felizes são os pobres em espírito, porque deles é o reino”, disse Jesus.
”Porque quando sou fraco, então é que sou forte”, disse Paulo.
Se envolva com a comunidade, com o reino de Deus, sem vergonha de quem você é, porque Deus vai te capacitar assim como você é a ser uma benção aos outros. Basta disposição: “eis-me aqui”.
Ilustração: uma história de Henri Nouwen e seu amigo deficiente Bill.
Precisamos aprender a valorizar e amar as coisas desprezadas, loucas, fracas e as que nada são, exatamente como fomos amados e escolhidos por Deus.
Que Ele continue transgredindo em nós e por meio de nós. Amém!

Comentários

comments

Contribua com sua opinião